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terça-feira, 29 de março de 2011

O que me espanta é ouvir as pessoas dizerem que no Brasil não há racismo.

A entrevista é longa, mas vale a pena lê-la para entender um pouco do Brasil e o meu, seu, nossos preconceitos arraigados.

O BRASIL PODE VIRAR UMA ÁFRICA DO SUL

Por Ivan Martins

Brasilianista afirma que exclusão dos negros das universidades e dos bons empregos cria um modelo de divisão de renda similar ao do apartheid

O sociólogo Edward Telles, professor da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, integra o simpático grupo dos brazialianists – aqueles acadêmicos americanos que fizeram do Brasil e dos brasileiros seu principal objeto de estudo. Racismo à Brasileira, seu livro que acaba de ser lançado pela editora Relume Dumará, tem porte para incluí-lo na relação dos brasilianistas mais respeitados. Telles faz nesse livro uma inédita comparação entre a situação racial no Brasil e nos Estados Unidos, baseada em recentes estatísticas demográficas. O resultado, além de uma livro imperdível, é um golpe devastador na auto-imagem do Brasil. Não só cai por terra o velho mito da democracia racial como revela-se um País que, nas palavras de Telles, caminha para um modelo sul-africano de concentração racial da renda. “Essa é a tendência. Se nada for feito é nessa direção que o Brasil avança”, diz ele. Aos 46 anos, de família mexicana, Telles conhece bem seu tema de estudo. Desembarcou pela primeira vez no Rio em 1989, fala bem o português e casou-se com uma gaúcha. Dias atrás, quando esteve em São Paulo para o lançamento do seu livro, concedeu a entrevista que segue:

DINHEIRO – Como é o racismo à brasileira?
EDWARD TELLES – Em todas as sociedades multirraciais você tem racismo e o Brasil não está isento disso. Mas enquanto nos EUA a segregação é feita de forma clara negros e brancos moram em bairros diferentes e não se casam entre si – no Brasil há outro tipo de racismo. Aqui há miscigenação, em oposição à segregação praticada nos EUA e na África do Sul. Mas a discriminação existe, o racismo existe, embora haja mais sociabilidade entre brancos e negros.
DINHEIRO – O racismo aqui é pior do que nos Estados Unidos?
TELLES – O racismo é diferente nos dois países, mas a desigualdade no Brasil é maior. Não se trata apenas de uma desigualdade de renda em geral, mas de uma forte desigualdade de renda racial. O que define isso é que praticamente não há negros na classe média brasileira, e muito menos na classe alta.
DINHEIRO – Os brasileiros se acostumaram a pensar que não existe discriminação racial no Brasil, mas somente discriminação de classe.
TELLES – Definitivamente não é somente uma questão de classe e de renda. Fiz análises de mobilidade social que mostram que negros e brancos nascidos em São Paulo na mesma classe social têm experiências econômicas diferentes. Os brancos de classes baixas têm muito mais mobilidade. Somente eles atingem posições profissionais de renda mais alta.
DINHEIRO – Por que isso acontece? Os jovens negros não têm as mesmas oportunidades de estudo ou não têm as mesmas oportunidades de trabalho?
TELLES – O problema principal está na escola. O acesso à universidade é o grande gargalo. Sem ela não se tem acesso às posições profissionais mais altas. Certamente há discriminação racial no trabalho, mas o problema central acontece antes. Os
negros não chegam ao mercado de trabalho mais qualificado porque não vão à universidade.
DINHEIRO – Existe indicação estatística de que o jovem negro ganha mobilidade social quando se educa?
TELLES – Em meu livro menciono um estudo comparando Brasil, EUA e África do Sul. Nele fica claro que no Brasil há uma relação mais forte entre educação e renda. A escolaridade dos negros na África do Sul é comparável à dos brancos, mas mesmo assim a renda dos negros é mais baixa. No Brasil a educação explica a maior parte da diferença de renda.
DINHEIRO – Os governos no Brasil sempre acreditaram que esse assunto não precisaria ser tratado de forma específica. Imaginava-se que ao atacar os problemas dos pobres também se resolveriam os problemas dos negros...
TELLES – Não é assim tão simples. Essas políticas gerais nunca são inteiramente eficientes. Sempre fica alguém de fora e quase sempre são os negros. Eu sou a favor da ação afirmativa, da reserva de vagas para jovens negros na universidade, como forma de abrir espaço para os negros no topo da pirâmide social.
DINHEIRO – O racismo atende algum interesse econômico?
TELLES – Acho que a classe média branca quer manter seus privilégios, que são o monopólio das vagas na universidade pública e os bons postos de trabalho no mercado profissional. As pessoas têm medo que as cotas possam ameaçar esse monopólio racial. Uma pesquisa de opinião mostra que o maior foco de resistência às políticas de ação afirmativa está na classe média branca. Mas há também a ideologia, que vem do século 19, que diz que os negros são inferiores. Ela não desapareceu, embora o argumento tenha mudado da biologia para a cultura – agora a cultura negra é inferior.
DINHEIRO – O sr. diz que nos EUA esse problema foi mitigado
pela ação do Estado.
TELLES – Nos Estados Unidos o Estado fez uma intervenção destinada a colocar negros na universidade. Com isso, a classe média de negros aumentou muito. Desde os anos 60 a classe média negra cresceu quatro vezes. Eu acredito que o acesso à universidade é a única coisa capaz de promover a mudança. A industrialização não muda nada e o crescimento econômico também não. Cabe ao Estado agir.
DINHEIRO – As ações afirmativas resolveram todos os problemas raciais nos Estados Unidos?
TELLES – Não exatamente. Embora você tenha uma classe média negra significativa e pessoas importantes como Condoleezza Rice e Colin Powell, há também uma grande classe baixa de negros que não se beneficia da ação afirmativa. Essas pessoas têm de ser ajudadas por políticas de Estado de combate à pobreza. De um modo geral, as políticas de ação afirmativa ajudam grupos minoritários a obter trabalhos de alta qualificação, do qual são tradicionalmente excluídos.
DINHEIRO – Como acontece a exclusão racial no trabalho?
TELLES – Às vezes a exclusão é feita pelo empregador na hora da entrevista. Mesmo não se achando racistas, os empregadores escolhem com base em estereótipos raciais. Mas em geral os brancos também têm mais acesso ao mercado de trabalho porque conhecem as pessoas certas, porque vêm de famílias que têm mais acesso. Às vezes os negros podem até se auto-excluir, por baixa auto-estima, que vem em parte pela ausência de negros representados em posições bem-sucedidas.
DINHEIRO – A multiplicação da classe média negra teve impacto econômico nos EUA?
TELLES – Um estudo econômico recente mostrou que os empregadores que usam a ação afirmativa têm mais sucesso, por que ela promove um ambiente de justiça nos locais de trabalho. Empresas que praticam a ação afirmativa procuram mais amplamente no mercado de trabalho para encontrar minorias e mulheres adequadas à suas necessidades e acabam utilizando critérios mais amplos de contratação. Esses empregadores acham pessoas com performance melhor do que empresas que usam canais tradicionais. A experiência mostra que contratar o filho do amigo nem sempre é melhor para os negócios.
DINHEIRO – Por que o sr. diz que crescimento não resolve o problema da discriminação?
TELLES – O milagre econômico brasileiro nos anos 70 fez a economia crescer muito, mas foi nesse período que mais cresceu a desigualdade racial. Os pobres ficaram um pouco menos pobres, mas quem realmente enriqueceu foram as classes médias e altas.
Veja o acesso à educação superior. Desde 1960 as universidades brasileiras se expandiram muito. Apenas 2% dos brancos tinham formação universitária em 1960 e quase nenhum negro. Em 1999 essa percentagem para brancos subiu para 12%, enquanto os negros foram de zero para 2%. Ainda que o número de negros na universidade tenha crescido, a brecha entre brancos e negros cresceu de forma bárbara.
DINHEIRO – As pessoas no Brasil temem que as políticas da ação afirmativa aumentem a segregação, levando a um cenário como o dos EUA.
TELLES – Mas as pessoas não são cegas à raça no Brasil! Raça é um elemento importante nas relações sociais. A forma de lidar com o outro já depende da aparência. A maneira como um trata o outro no Brasil é uma combinação de classe e raça. É por isso que as poucas pessoas negras na classe média continuam sendo discriminadas. Não é como se os brasileiros fossem totalmente inocentes nesse assunto e a ação afirmativa fosse romper o encanto. O encanto já foi rompido há muito tempo, contra os negros.
DINHEIRO – O Sr. conta em seu livro que a mestiçagem brasileira impediu que se implantassem aqui políticas legais de discriminação no início do século 20. A mesma mestiçagem não impediria, agora, que se implantem políticas de cotas? Com tanta mistura, como distinguir branco de negro?
TELLES – Esse é um problema que vocês terão de resolver. Nos EUA havia leis racistas que diziam quem era negro e quem não era. Essas regras foram usadas para promover os negros. No Brasil é mais difícil, mas isso não deveria ser impedimento para se tomar ações afirmativas. A sociedade brasileira tem de ser criativa porque obviamente não se pode copiar os Estados Unidos nesse caso.
DINHEIRO – Não existe a possibilidade de as políticas de cotas criarem no Brasil uma hostilidade racial que hoje não existe?
TELLES – Eu acho o contrário. Nos Estados Unidos a convivência de brancos e negros nas universidades, mesmo um pouco tensa, tem permitido conhecimento melhor um do outro. Acho que no Brasil, onde já existe convivência inter-racial, ela vai se estender à universidade, onde só há brancos.
DINHEIRO – Há anos o Brasil investe muito mais na educação superior do que na primária. Isso pode ser lido como uma ação racista do Estado brasileiro?
TELLES – Certamente essa diferença descarada em favor da universidade é, indiretamente, uma ação racista. Quem entra nas boas universidades públicas são os brancos. É difícil ver um negro aqui na USP, e olha o investimento público que ela recebe! Onde fica o investimento do Estado na educação dos negros?
DINHEIRO – Olhando pelo outro lado, qual seria o custo econômico e social de não fazer nada sobre esse assunto?
TELLES – Nas profissões técnicas avançadas, mesmo no Direito, há uma crescente desigualdade racial. Os brancos estão tomando as novas posições de forma desproporcional, porque elas necessitam de formação universitária. A mobilidade social para cima é muito maior para brancos.
DINHEIRO – E qual é a implicação de longo prazo dessa tendência?
TELLES – Isso implica que a classe média é cada vez mais branca enquanto os pobres são cada vez mais negros. Se você projeta a tendência para três ou quatro gerações à frente, vai haver mais desigualdade racial. Se não mudar nada, aos poucos o Brasil vai se aproximar da África do Sul. É a tendência. Talvez demore algum tempo, mas se nada for feito é nessa direção que vai o País.
DINHEIRO – Como americano, o Sr. se choca com algum aspecto particular das relações raciais no Brasil?
TELLES – O que me espanta é ouvir as pessoas dizerem que no Brasil não há racismo. Nem vale a pena discutir. Eu cheguei ao Brasil em 1989 e as pessoas me diziam que havia aqui uma democracia racial. As pessoas que eu via pedindo nas ruas eram negras, as pessoas que moravam nas favelas eram em sua maioria negras e toda a classe média era branca. Para mim era bastante óbvio que havia um problema, mas as pessoas não percebiam. Isso era chocante.
Ainda bem que está mudando.

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